sexta-feira, 19 de junho de 2009

We are strangers to ourselves (1)













Veli Granö, Veijo Rönkkönen, 1986/ © Veli Granö




É surpreendente que o interesse dos finlandeses pela arte outsider e arte folk suceda tão tarde, em comparação com países centro-europeus (França, Suíça, Alemanha, Hungria, etc.). Mais surpreendente é que esse atraso tenha permitido transformar as regras do seu mundo artístico, as hierarquias de financiamento, a atribuição de prémios, a programação dos centros de arte contemporânea e, acima de tudo, liderar projectos comunitários que envolvem as melhores colecções de arte dos “não-profissionais”, artistas visionários e marginais de toda a Europa. Em pouco tempo, sob o signo do desenvolvimento nórdico, nasceu uma estética plena: a ITE art, designação finlandesa para “self made life” (“Itse Tehty Elama”).

Vem isto a propósito do que se tem escrito sobre o Museu de Arte Popular (MAP), em Lisboa, cujo espólio aguarda no Museu de Etnologia uma “ideia” para o espaço do pavilhão projectado em 1940 pelo Arq. Jorge Segurado. O problema não está na falta de “ideias”. Nem na ausência de vontade política. África.Cont, por exemplo, tem uma ideia e um projecto, e existem fundos para a sua concretização, já agendada. Algumas propostas têm sido anunciadas para o futuro do MAP, ainda que o Ministro da Cultura tenha dito pretender construir aí o Museu da Língua. Na sua crónica de Janeiro da L+Arte, Raquel H. da Silva propõe que se trabalhem as colecções “através da narrativa expositiva das razões de ser do MAP, no contexto do Estado Novo e das heranças da primeira fase da Etnologia em Portugal”. Esta é uma linha de pesquisa fundamental. Corremos, porém, o risco de tornar o pavilhão (se requalificado) um segmento do Museu de Etnologia e do “desamor” (Raquel H. da Silva) que o envolve.

Mas terá a arte popular ficado circunscrita ao “pitoresco fácil”[2] do Mundo Português de 1940? Ou estará espalhada pelo país inteiro, e é singular? Que existe para além do acervo de alfaias, figurado de barro, cestaria, artes da pesca, entre outros objectos de carácter utilitário ou decorativo? De que forma se pode tratar este acervo museológico? Quais os verdadeiros “fantasmas” que animam o MAP?

Talvez as questões de fundo sejam: O que fazer com o popular, o folk, o hors-normes da actualidade? Com as imagens que agitam a nossa visão histórica, cultural e psicológica, e induzem desordem na realidade? Qual o lugar contemporâneo para objectos que nunca pertenceram à “alta cultura”?

Na Finlândia há um episódio matricial no processo de visibilidade da arte contemporânea folk e ITE, que permite analogias com o contexto português. 

Primeiramente, consideremos a capacidade de certas imagens na desestabilização e reordenação de cânones e aprioris. A sua natureza “dissidente” predispõe conflitos na determinação de um “espaço específico de relações comuns” entre os objectos e os sujeitos. A estas imagens o filósofo J. Rancière designa “imagens políticas”.

“Onnela – Trip to Paradise”, a série de fotografias exposta por Veli Granö em 1986, foi capaz de provocar esse “conflito” no meio cultural finlandês, acontecimento que o artista descreve assim: “It came as no surprise that putting folk art on walls of galleries, even in the form of photographs, aroused a great deal of resistance and criticism in Finland at the time”[3].

Granö procurou perceber o significado geral da arte e, em particular, a localização da criação artística: “De onde vem a arte?” e “Por que se tornam algumas pessoas artistas, e a maioria não?” O encontro com o mundo plural da arte outsider e da “backyard art” reforçou a consciência de que “a arte tem formas diversas de nascimento” (V. Granö), muitas das quais com funções genuínas e vitais na cultura finlandesa. A exposição deu corpo a uma selecção de vinte artistas, nos seus mundos idiossincráticos.

Mas “Onnela” não é só o mapeamento de um mundo novo, análogo ao Éden que Gauguin descobre quando chega ao Tahiti; não é “apenas” o conjunto de retratos de escultores de madeira, inventores de objectos a partir de objectos encontrados, de loucos e visionários, coleccionadores, de modeladores de figuras, ou de videntes. Aquilo que tornou o projecto um dispositivo de constituição de um campo artístico é o facto de nele estar inscrito um olhar inter pares, o olhar de um artista que vem da “alta cultura”, se debruça sobre a “baixa cultura”, e rasura este hiato. O método de trabalho da “viagem ao Paraíso” é descrito magistralmente por Veli Granö, como um contacto entre criadores: “I worked upon the condition that the author of the work could definitely be regarded as an artist”[4].

Veli Granö fotografou no terreno vacilante que vai do documento à ficção, um dos aspectos centrais da pesquisa contemporânea. Neste exercício há uma espécie de espelho antropológico que Harri Kalha evoca para definir as fotografias de Granö: “The documentary photos are contemporary art, because under the veil of exhibiting others, they are actually passing the juicy comment on us, our streamlined culture, our notions of art, our values and attitudes”[5].

Se o projecto de Granö foi uma espécie de mito fundador, o Estado finlandês foi decisivo para a criação e preservação desta cultura popular e outsider. No final dos anos 90, duas instituições finlandesas ligadas ao Ministério da Cultura, a “Union for Rural Culture and Education” e a “Folk Music Foundation”, sob pretexto  de refrescar a programação do festival internacional de música folk, suscitaram uma aventura nos confins da Finlândia profunda. Um anúncio de tipo “Wanted” teve resposta de mais de 300 artistas, com a ajuda de “agentes” locais (jornalistas, responsáveis de centros regionais, universidades “informais”, fotógrafos, antropólogos, experts, etc.).

Este universo escondido fez reviver a memória da série de Veli Granö. Era fundamental rever as imagens e convidar o artista para o projecto ITE art. Raija Kallioinen, coordenadora da “Union for Rural Culture and Education”, é  peremptória em afirmar a capacidade que “Onnella” teve em assombrar o projecto “institucional”: “It was Veli Granö's images from Onnela and those artistic landscapes that we pursued[6].

Num curto espaço de tempo, deram-se passos significativos. Primeiro fundou-se, em Kaustinen, o ITE – Contemporary Folk Art Museum, com o objectivo de estudar e preservar a arte popular finlandesa. Paralelamente promoveu-se uma conferência com os mais importantes teóricos, artistas, editores e historiadores internacionais sobre as particularidades do contexto finlandês. Submeteu-se depois uma candidatura à União Europeia, o programa “Equal Rights to Creativity - Contemporary Folk Art in Europe”, que a Finlândia lidera, e associou-se uma editora, a “Maahenki”, para a publicação de edições de grande qualidade dos trabalhos dos artistas ITE. Em 2005,  Tuula Karijalainen, a então directora do museu nacional de arte contemporânea – Kiasma, em Helsínquia, programa a magnífica exposição “In Another World”, que exibe alguma da melhor ITE art finlandesa, a par de artistas históricos das colecções europeias (de Alain Bourbonnais a Henry Darger ou Adolf Wölfli). Uma verdadeira entrada triunfal de um mundo que muito raramente mete os pés nas agendas curatoriais da arte contemporânea, e um decorrente sucesso de público. Águias, ursos, fauna de cimento, labirintos, carros, esculturas vegetais, visões do além, testemunhos de contactos com extra-terrestres, etc, fazem coincidir quintal e museu num mesmo plano, até porque o display utilizado nas salas projectadas por Steven Holl e nos parques exteriores do Kiasma uniformizava o percurso da exposição. E em 2007, Veijo Rönkkönen, um dos artistas fotografado vinte anos antes por Veli Granö, é condecorado com o “Finland Prize” pelo seu parque de esculturas, talvez o mais importante conjunto de trabalhos de arte ITE na Finlândia. Bastaram dez anos para pôr de pé um projecto consistente, realizado a partir de um campo “não visível”. Não que este campo não existisse. Existia e estava em boa forma, porém poucos conseguiam vê-lo.

Voltando ao nosso contexto, coloquemos a questão: Onde nasce a arte, em Portugal? Não estamos a falar de escolas, ateliers de artistas, colectivos independentes ou residências artísticas, onde a arte circula sem traumatismos. Antes dos lugares improváveis. Claro que somos capazes de os identificar, se esse debate se encetar. Neste sentido, o trabalho de artistas como Granö tem um papel fundamental na re-significação de culturas artísticas e no efeito de espelho que permite aferir as nossas noções de arte e o espaço que queremos dar, ou não, a determinados objectos artísticos.

Não se trata da exemplaridade de um modelo, nem da adopção do fenómeno ITE art ao caso português. Podia falar-se aqui de “colecções de arte africana”, “arte das crianças” ou “arte dos loucos”, e falar-se-ia da mesma invisibilidade, e orfandade, dos mesmos “fantasmas”. No que respeita ao MAP, haverá quem pretenda apagar os vestígios do Estado Novo, mas invocar este perigo parece um álibi recorrente que, para as pessoas da minha geração, aquela que a breve prazo tomará as decisões programáticas, pouco ou nada interessará. Este álibi ofusca os verdadeiros fantasmas que animam o MAP. O problema, julgo, reside na tremenda dificuldade que temos em misturar culturas que nos habituamos a ver separadas, como se esse contacto fosse uma infidelidade.

O encontro da arte profissional com as artes não-profissionais dissolveu a rígida distribuição de géneros e hierarquias na tradição da arte Ocidental. Foi esta dissolução que permitiu a nova "distribuição do sensível" do “regime estético da arte”[7], articulada ao longo do séc. XX sobre o sonho, a loucura, o primitivismo, o folclore, o infantilismo, o “baixo-materialismo”, a “esquizo-análise”, o prosaico, a “bad painting”, etc.

Um dos critérios para avaliar a abertura do debate estético numa sociedade, a capacidade de observar o mundo da arte como plural, não restrito aos objectos que consecutivamente elege e apoia, é a visibilidade dos artistas não-profissionais, em condições idênticas de reconhecimento. Existe tal debate no meio artístico português?

 O que se propõe, no âmbito de um projecto para o MAP, é a abertura do conceito de “popular” e a pesquisa das manifestações contemporâneas de natureza outsider, folk, art brut. A par da colecção seminal de objectos, sugere-se linhas de continuidade e novas conexões entre imagens. (Exemplificando: a relação de Ernesto de Sousa com Rosa Ramalho e Franklim; a obra de Jaime Fernandes e o filme “Jaime” de António Reis; o “Acto da Primavera” de Manoel de Oliveira e os actores não-profissionais; os escultores de gigantones; os desenhos de Victória Domingues, de Artur Moreira, entre outros; o mundo urbano das tatuagens, da transformação de carros, etc.)

Marta Mestre (artigo publicado na revista L+Arte, Março, 2009)


[1] Julia Kristeva

[2] Ferro, António, “Discurso do secretário nacional de informação no acto inaugural do Museu de Arte Popular aos 15 de Julho de 1948”, Museu de Arte Popular, Edições SNI Lisboa, Lisboa, 1948.

[3] Granö, Veli, “In Search of a Finnish Paradise”, Raw Vision nº 46, Spring, 2004.

[4] Entrevista com Veli Granö, 22.01.2009 (Helsínquia).

[5] Kalha, Harri, “Veli Granö – Author in Quotation Marks”, Veli Granö and Tuovi Hippelainen: Rien: Is That All? Ed. Hannele Kolsio, Exhibition Cat. 4.6 – 5.9.2004, Pori Art Museum, 2004, p. 95.

[6] Entrevista com Raija Kallioinen, 20.01.2009 (Helsínquia).

[7] Rancière, Jacques, Le Partage du sensible, La Fabrique éditions, Paris, 2000, p. 36.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores